terça-feira, 24 de dezembro de 2013

IDOSO E INOCENTE É MORTO EM FAVELA "PACIFICADA"

       Cada vez que surge alguma notícia de inocentes sendo mortos pela Polícia, principalmente pelas UPP's, no Rio de Janeiro, somos tomados por uma sensação de impotência e desilusão. Nos perguntamos: O que está acontecendo? Como pode ainda haver derramamento de sangue inocente em comunidades pacificadas? Como resultado da ausência de repostas firmes para nossas perguntas, somos até mesmo tentados a assumir que o ideal de policiamento comunitário no Brasil é utópico e nunca será realidade. 

Mas nenhuma guerra se pode vencer sem dificuldades. Um objetivo tão grandioso como o de fazer da polícia Brasileira uma instituição amiga, eficiente e humana, não será alcançado se não com muita resistência e força de vontade. CONTINUEMOS NADANDO CONTRA A MARÉ! 

O texto a seguir é a narrativa do Teólogo Antônio Carlos Costa (Fundador do Rio de Paz), falando sobre sua experiência na qual vivenciou a morte de um senhor de idade, atingido supostamente pela arma de um Policial Militar, e a revolta dos moradores contra a polícia no complexo de Manguinhos - RJ. 

Na noite de quarta-feira passada, lideranças comunitárias do Complexo de Manguinhos me telefonaram pedindo que corresse para a favela Mandela, na esperança de que ajudasse a dar visibilidade a um crime que acabara de acontecer. Um policial teria disparado um tiro que acertou o olho esquerdo de um senhor de 81 anos de idade levando-o à morte.
Entrei no meu carro e parti, seguindo a minha consciência, que servia de contraponto às palavras de um amigo, conselheiro, profundo conhecedor da realidade de favela, que me aconselhava a não atender ao pedido que me fora feito, devido à minha falta de experiência com conflito entre morador de favela e polícia.
Durante o caminho ligava para os amigos da imprensa, relatando o ocorrido e pedindo que mandassem suas equipes para a favela. Estacionei na Leopoldo Bulhões e entrei na comunidade. Passando pelos moradores que protestavam na rua, fui conduzido ao local onde se encontrava o corpo da vítima. Subi três andares, abriram um portão, e vi o que jamais sairá da minha memória. O brilho do sangue. O vermelho contrastando com o chão de cimento e uma pequena parte da pele da vítima, cujo corpo não fora completamente coberto pelo lençol que o envolvia.
Não sabia como conciliar tantas tarefas ao mesmo tempo. Consolar a mulher da vítima, apaziguar os moradores, ouvir os relatos das testemunhas, fazer o registro fotográfico, mandar a imagem para a imprensa e pensar numa forma de a comunidade protestar de modo pacífico. 
Ali me contaram a história trágica do seu José Joaquim -marceneiro, cujas obras estão espalhadas pelo Rio de Janeiro, amado pelos antigos patrões, sem parente de sangue no mundo, apaixonado pela dona Maria Lúcia, com quem haveria de se casar nos próximos dias
depois de nove anos de vida em comum-, que após o jantar, na porta de sua casa, desabou sem ter tido tempo de pensar que se tornara cego de um olho.
Moradores contam que policiais da UPP apertaram a garganta de um menino de 13 anos, fazendo menção de levá-lo à delegacia sem a presença dos responsáveis. Houve protesto, pessoas partiram na direção dos policiais, o que levou um deles a desferir três disparos de pistola, dois para o alto e um que foi na direção do prédio onde seu José Joaquim estava. 
Desci do prédio e voltei à avenida principal pensando em pedir a alguém da imprensa para me acompanhar. Havia apenas uma equipe de reportagem do SBT, que decidiu, por motivo de segurança, permanecer onde estava. Na porta de entrada da comunidade, encontrei um policial civil, que decidiu ir até ao local do crime a fim de dar início ao trabalho de investigação. Uma batalha se iniciava. A luta para dialogar com moradores enfurecidos e convencê-los do fato de que ali estava quem ajudaria a provar a autoria do crime. O policial pode entrar e fazer o seu trabalho. Ao lado do corpo, sozinhos, num prédio cercado por moradores indignados, três policiais militares petrificados, preservando o local do crime.

Desço novamente do prédio. Agora, para viver um dos momentos de maior vulnerabilidade da minha vida. Vejo caçambas viradas, pedaços de madeira e lixo espalhados pela rua. Uma notícia havia chegado dando conta de que na parte mais interior da favela Mandela, estava ocorrendo um conflito entre policiais e moradores. Cruzando ruas escuras e estreitas, cobertas de lama e poças d'água da chuva que caía, nos deparamos com dezenas de jovens, adolescentes, crianças, mulheres, em confronto com policiais militares. Pedras são lançadas. Garotos disparam morteiros. Em revide, policiais lançam bombas de efeito moral e gás lacrimogênio, gás de pimenta e podia-se ouvir muito tiro. 
Corria em busca de proteção. Havia morador e policial à frente, atrás e ao lado. Para onde ir? Buscava abrigo nas casas e nos becos. Fugia para atrás de parede. Lideranças comunitárias me diziam chorando que haviam perdido o controle da situação. Procurei o comandante, com que já conversara duas vezes, dizendo que se ele retirasse os policiais daquelas vielas escuras, tudo se acalmaria, uma vez que os moradores não quebrariam a própria comunidade e não fariam mal uns aos outros. Ele respondeu: "o senhor já me disse isso três vezes". Porém , foi o que aconteceu, eles se retiraram do interior da favela e tudo se acalmou.
Voltamos à Leopoldo Bulhões, ponto de contato de dois países. Asfalto, linha de trem, carros nas ruas. Para dentro, o mundo invisível da favela.  Havia ainda muito policial na avenida. Encontro fotógrafos, cinegrafistas e repórteres. Apresento relato do que havia testemunhado. Peço para que venham comigo para dentro da favela, ouçam os moradores e façam o registro da imagem. Todos se recusam a entrar. Um deles respondeu: "recentemente perdemos um companheiro de profissão com um tiro no peito", falava sobre o Gelson Domingos cinegrafista da TV Bandeirantes, morto enquanto cobria operação policial em favela. Um outro, afirmou: "se entrar na comunidade serei punido pela minha emissora". Argumentos irrefutáveis.
Eles pedem para que eu grave. Começo a falar. No meio da entrevista, bombas explodem. Alguém da imprensa grita: "É tiro". Todos saem correndo pela Leopoldo Bulhões, com câmera, microfone e bloco de anotação na mão, e eu me refugio dentro da casa de uma moradora que gentilmente me abrigou. Espero o tiroteio cessar. 
Entro no meu carro no meio da madrugada. Tomo a ponte Rio-Niterói. Volto para casa pensando no tiro no olho que nós também levamos, e que nos torna parcialmente cegos para a realidade dos problemas sociais do Rio de Janeiro.
Indago: lá estávamos nós -moradores pobres, a viúva, policiais, repórteres, cinegrafistas, fotógrafos, lideranças comunitárias, crianças, adolescentes, jovens, idosos-, com os pés na lama, na noite escura, com a roupa encharcada pela chuva, inalando spray de pimenta, com os olhos lacrimejando pelo efeito do das bombas de gás lacrimogênio, os ouvidos tinindo pelo barulho das explosões. O que e quem está acima de nós e nos remeteu para aquele inferno? Qual a responsabilidade de todos nós na morte do seu José Joaquim e miséria daquela favela? O que o nosso olho cego não vê?

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