sábado, 24 de maio de 2014

POLÍCIA DISTRAÍDA - ARGUMENTOS DA LEGALIZAÇÃO

O texto que segue é do delegado federal Jorge Pontes e traz argumentos favoráveis a legalização das drogas com base na afirmação de que o combate é uma luta perdida e é mais prejudicial (causa mais males), do que as próprias drogas. ATENÇÃO: LEIA COM SENSO CRÍTICO E SEM ROMANTISMO, QUESTIONE E NÃO FAÇA AFIRMAÇÕES PRECIPITADAS. ESSA É A ALMA DO GRUPO.

*Jorge Pontes - O Estado de S.Paulo
Qualquer pessoa que se atenha um pouco mais às discussões em curso sobre o problema que a humanidade enfrenta com o consumo de drogas perceberá que posições mais corajosas vêm sendo assumidas e algumas mudanças de maior ângulo estão finalmente a caminho. Apontam para essa tendência alguns dos últimos acontecimentos de 2013. Num lapso de 15 dias o Uruguai promulgou a lei que o transformou no primeiro país do mundo a manter um mercado legal de maconha e o Colorado se tornou o primeiro Estado dos EUA a permitir o uso recreativo da erva. E foram os EUA que implantaram no planeta o modelo vigente de "guerra às drogas".
O combate ao tráfico de drogas, da forma como é operado hoje em dia, consiste num equívoco. Assumo perante meus colegas que atuam na honrada Delegacia de Repressão a Entorpecentes (DRE) que, daqui a uns 60 anos, serão lembrados da mesma forma que hoje rememoramos os pilotos de zepelins.
Está bem claro que a repressão às drogas é uma "enxugação" de gelo, uma batalha perdida que travamos contra nós mesmos e que talvez alveje mais inocentes do que culpados de alguma coisa.
Desde que o homem é homem ele se droga. Existe um porcentual da humanidade que procurará as drogas seja por fraqueza, seja por fortaleza, seja para fugir, ou para se encontrar, por esperança em algo ou desesperança em tudo. Grande parte dos seres humanos tem a natureza de experimentador, de viajante em si mesmo. Haverá sempre homens e mulheres dispostos a ingerir drogas e, por conseguinte, haverá sempre aqueles que enfrentarão a espada da lei para atender a tal demanda.
O Estado, por meio da Lei Antidrogas, intromete-se numa relação consentida entre fornecedor e consumidor. É nesse ponto que subsiste o anacronismo da proibição. A criminalização foi um equívoco, um rumo que precisaria ser reparado o quanto antes, pois as consequências da proibição são muito mais devastadoras do que se pode imaginar.
A proibição, ao deflagrar o comércio ilegal, gera uma infinidade de delitos "de suporte" ao tráfico de drogas. Sem a pretensão de esgotar o rol de condutas, cito como tais crimes "de suporte" o tráfico de armas, corrupção de menores, homicídios, furtos, roubos, lavagem de fundos, corrupção de policiais, juízes e políticos.
O tráfico de drogas é transversal a várias atividades, catalisando e potencializando outras condutas. A descriminalização das drogas implodiria toda uma plataforma que é suportada pelo tráfico. Numa outra vertente não menos desastrosa observamos que a proibição deu causa à própria existência de drogas alternativas, mais acessíveis em termos mercadológicos e, por conseguinte, muito mais devastadoras para a saúde.
E, por fim, a pior das consequências do combate ao tráfico de drogas: sua natureza "distrativa". Há quatro décadas a Polícia Federal "se distrai" perseguindo traficantes de maconha no sertão nordestino e de cocaína no Norte, no Centro-Oeste e no Sudeste, enquanto poderia estar destinando mais atenção e recursos a investigações de fraudes faraônicas cometidas com dinheiro público, buscando rastros de desvios de verbas federais, de lavagem de capitais e de corrupção de políticos e altos funcionários públicos dessas mesmas regiões.
Em algumas unidades da Polícia Federal no Nordeste, grande parte dos canais de interceptação telefônica é utilizada para reprimir o tráfico de maconha de baixa qualidade. É a repressão às drogas sendo usada como boi de piranha.
Seria um lucro para a sociedade se substituíssemos a DRE pela repressão à corrupção política, ao desvio de verbas públicas, à lavagem de dinheiro e a crimes eleitorais, aos crimes ambientais, atividades que protegem interesses coletivos e trariam benefícios para a sociedade.
É bem possível que essa atividade "distrativa" venha sendo alimentada há décadas, de cabeça pensada, por aqueles que fazem passar a boiada ao largo do boi de piranha. A "indústria da proibição" é uma atividade lucrativa e não foi à toa que o bicheiro Carlinhos Cachoeira, por intermédio do seu amigo senador, tanto se empenhou contra a legalização dos jogos de azar.
No Brasil a corrupção é um flagelo muito mais aviltante que o problema das drogas e, por mais estranho que possa parecer, em dezembro de 2011, das 514 mil pessoas presas nas prisões do País, apenas 632 cumpriam pena por corrupção, isto é, pífios 0,12%. O reforço na repressão aos crimes de corrupção engrossará esse porcentual e, consequentemente, funcionará como elemento intimidador, diminuindo também a sensação de impunidade amargada pela imensa maioria de brasileiros.
Com mais repressão a tais crimes e mais divisas recuperadas e poupadas, muitos programas de apoio a viciados poderiam ser levados a cabo com sucesso, muitos hospitais poderiam ser construídos e equipados. Se pararmos de gastar o equivalente a três pontes para construirmos uma só ponte, se diminuirmos a crônica incidência de fraudes nas licitações públicas, muitos recursos sobrarão para projetos de apoio e tratamento aos usuários de drogas. Isso sem falar que, segundo censo recente, 25% da população carcerária brasileira seria originária de transgressores às leis antidrogas, de traficantes. Abriríamos espaço nas cadeias para alojar mais criminosos violentos e políticos corruptos.
A guerra às drogas é prima-irmã da malfadada Lei Seca, que vigorou de 1920 a 1933 na América. Tudo o que a guerra às drogas acarreta de negativo como efeito colateral foi experimentado pela Lei Seca, sem tirar nem pôr.
A droga é um problema a ser incessantemente endereçado por políticas sociais, e não por uma guerra militarizada que acarreta danos de altíssimas proporções e mais prejuízos do que o próprio objeto guerreado.
DELEGADO DA POLÍCIA FEDERAL, FOI SUPERINTENDENTE REGIONAL, DIRETOR DA INTERPOL NO BRASIL E MEMBRO ELEITO DO COMITÊ EXECUTIVO DA INTERPOL, EM LYON (FRANÇA), REPRESENTANDO AS AMÉRICAS

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